Darío Canton | Escritor & Poeta
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Moçambiquea

Latinoamericana - 9 dez º 75
Joaquim Lourenço Marques

Querido amigo e poeta Dn. Darío Canton: cordiais saudações. Há dois dias completei a leitura dos seus outros livros. Li Poamorio cuja edição, desde logo, é muito original: o livro se inicia a metade, de sorte que o «principio» dele é a continuação da parte restante… Mas topei logo o ardil. O poema da capa, nº 28 dedicado ao gato, aproveitei-o para a minha antologia universal, em prosa e poesia, dedicada também ao «Gato na literatura». Mais tarde publicarei esta antologia, fruto de muitos anos. Tenho um amigo guatemalteco, o magnifico escritor Augusto Monterroso, que prepara uma antologia ainda mais bizarra: a môsca na literatura. Tem apanhado môscas em muitas partes.

Algumas foram contribuição minha. Mas é Machado o poeta das môscas mais vorazes e impertinentes, ao mesmo tempo as mais familiares e queridas. Môscas e gatos, cada um com a sua mania… Poamorio é livro de amor irónico, sincero sem querer transparecer lirismo, amor que se busca em vão «merdificar», mas Ud. torna-o subtilmente ambiguo e sugestivo: é amor-paixão e amor- broma. A sua capacidade de sorrir é fantástica, insinuante, bem reveladora de sua idiosincrasia filosófica: tudo é importante e nada é importante. Somos sonhos entre espelhos. A realidade é intangível. Estamos condenados ao «eu», ao «yo» solitário, à prisão sem a companhia dos outros. Se Ud. não fôra o céptico que é –sinal de que é profundamente culto– Ud. seria um lírico como Enrique Banchs, totalizador, integral, sem a mancha (?) de se rir e burlar do que mais ama e o compromete. A sua busca estética éa de parecer um poeta anti-amor, mas apesar desse tendência… não o consegue. Sente-se que o amor representa algo de muito importante na sua vida generosa.

Devo dizer-lhe que de todos os livros o que mais me deslumbrou (e deslumbrar é o têrmo exacto, sem qualquer veleidade de o querer agradar) é a sua La mesa Tratado poeti-lógico, editado por Siglo XXI de Argentina. Por sinal, em 70, no México, conheci pessoalmente o pro-comunista Dr. Arnaldo Orfila Reynal, director e fundador de Siglo XXI Editores, de México DF. Homem exuberante. Havia sido director, por muitos anos, de Fondo de Cultura Económica. O facto de Ud. ser editado por Siglo XXI já é um sinal positivo de sua grandeza poética, sem sofismas. Eu conheço bem a literatura hispanoamericana, sei de muitos movimentos e originalidades, mas também sei que o seu livro surge no meio do inumerável como algo muito, muito, muito original, algo que só por si bastaria para o erguer como um nome de extraordinário poeta. E tão extraordinário que tomei a iniciativa de o recomendar a um bom poeta português, Egito Gonçalves, homem de minha geração, com uma tendência neo-realista e «bromista» igual á de Ud. Egito é considerado o melhor tradutor de poetas em lingua castelhana. Traduziu uma antologia da poesia social espanhola, etc. Tem relações com o poeta argentino, o editor Rodolfo Alonso, de Bs. Aires. Estou certo de que Egito fará algo por sua merecida divulgação em Portugal.

Se assim fôr, Ud.entrará pela melhor porta. Ele é todo um poeta e sabe bem o castelhano. Mande-lhe todos os seus livros mas sem esquecer La Mesa. Peço ao Egito para traduzir-lhe La Mesa. Só um homem com a sua variada cultura é que poderia produzir um livro tão perfeito e essencial como La Mesa.

Um livro que tem muitas leituras. É bem um tratado poeti-lógico, como Ud. o subintitula. Porque a lógica dos físicos –Leonardo da Vinci, Galileo Galilei, Einstein, o vosso ex físico Ernesto Sabato, etc.– é sempre uma intuição primigénitamente poética. A física nasce da poesia e não o inverso. Ser-se lógico não se quer dizer anti-poético. Isso é o racionalismo barato, o pagão, o racionalismo dos positivistas e até dos dialécticos marxistas. A lógica tem uma zona de obscuridade que é profecia, misticismo, mistério, sei lá o quê. Encontramos isso em Heráclito, mas não em Marx.

Claro que no seu livro há uma outra espécie de lógica, também: a lógica discursiva, a do tema em desenvolvimento ascendente (os XVIII capítulos do progressivo Indice General). Mas não é a esta lógica (fruto da mera ordem, da mera disposição dos vários materiais ou subtemas) que eu me refiro: é á lógica que desentranha o ser ao ser, a que busca a essência das coisas, numa tentativa de escalpelizar o vivo como se fôra algo morto e anatómico. Essa é que é a lógica de seu livro, desde logo uma lógica… poética! Ud. procura definir a mesa e com furor, paciência, velocidade, candura assim nos vai definindo a mesa. E consegue definir: mesa é tudo, é o ventre, a origem e o fim. É a vida. É a nossa biografia. Sobretudo, a nossa fôrça de vontade e engenho. Mesa é o nosso génio! Se Vicente Huidobro, o creacionista chileno, fôsse vivo e lesse seu mágico livro (afinal um tratado anti-lógico na acepção comum e radicalmente poético), ele diria: amigo Darío Canton: a mesa não se compõe de uma tábua horizontal ou pedra. Ele, como puro criacionista, diria: mesa se compõe da ideia de mesa com uma tábua horizontal ou uma pedra… Mas em boa verdade.

Ud. chega ao mesmo resultado: a mesa não é algo estranho ao homem, é algo feito com a ideia do homem, os materiais e as pernas já pouco interessam… Se o inicio de seu livro parece estar contra Huidobro e a espontanea criatividade do homem «faciens», o desenvolvimento de seu livro vem depois coincidir com Huidobro.

Assim, a sua MESA é bem um livro criacionista, um livro que instila confiança no homem como potência criadora, uma espécie de Deus sem se saber. Este seu livro também se me afigura como uma alegoria à importancia que se debe conceder ao homem no universo. O homem é um ser activo, não um ser passivo ou contemplativo.

A mesa que Ud. prefigura é a mesa da acção, a mesa compromisso, a mesa «yo y mi circunstancia», a mesa existencialista. A mesa existência a desabrochar a essência. A mesa caminho (el camino se hace al andar, diria o nosso Antonio Machado).

Será estúpido quem leia mesa onde está mesa. A leitura de seu livro, revestida de ambiguidades, só se desvenda num plano superior, trans-mesa, não no imediato e concreto de qualquer mesa real. Há dias dizia que Ud. era talvez sem saber um poeta metafísico. Sim, é-o fortemente. E tão metafísico que até inventaria uma mesa que J.L. Borges olvidou! (p. 38). Só um homem culto e poeta, um poeta passado pelas filosofias, é que realizaria o livro La Mesa. Este seu livro me deslumbrou inteiramente e sempre me acompanhará pela vida fóra. Um dia, con mais vagar, lhe escreverei a critica mais «poeti-lógica».

Quero dar-lhe os parabéns por essa mistura de realidade e cultura, sonho e vida, sensível e suprasensível, física e metafísica, concreto e abstracto. E chamar-lhe simplesmente –o que é tudo– um grande poeta. Uma obra sem par na literatura hispanoamericana.

Não me admira nada que os brasileiros tivessem estimado e valorado o seu livro. No Brasil há uma corrente poética, a do concretismo. Também lida com mesas e outros objectos do quotidiano. Simplesmente há uma diferença grande: não existe transcendência nessa poesia e a poesia de Ud., embora «concreta», é sempre transcendente.

Os brasileiros apenas saboreiam parte do fruto e não o fruto todo. Pode, assim, dizer-se que Ud., noutro meridiano, elevou o concretismo brasileiro a categoria universal.

Uma observação: a p. 75 Ud. refere-se a Colón e á fórmula «s.e.ú o» tornada popular pelo almirante nas suas cartas a Isabelita. Ud. interpreta (sea este u oeste). Eu, como português, posso elucidá-lo nesta passagem: Colombo escreveu mal o castelhano e escreveu-o com muitos portuguesismos. O saudoso amigo Don Ramón Menéndez Pidal escreveu um estudo sobre a linguagem de Colombo que por sinal foi publicado na «Miscelânea de Estudos em Honra de Joaquim de Carvalho», meu pai. Por este estudo Pidal provou que as relações de Colón com Portugal lhe marcaram o estilo de escrita (ele se casou com uma filha do descobridor Bartolomeu Perestrêlo, viveu na Madeira, etc.). Ora é comum em Portugal finalizar as cartas com um ‹seu› ou um ‹muito seu o›, que equivale a um seu servidor, seu amigo, etc. Penso que seria o caso: Colón estava utilizando uma forma portuguesa de despedida. O equivalente ao vosso «suyo»…

Outra observação: Ud. se refere a Colón e depois a outro descobridor, Vasco da Gama. Foi Vasco da Gama quem dobrou o Cabo das Tormentas, onde hoje se situa a linda e florescente Cape Town, Cidade do Cabo. Porque motivo se esqueceu Ud. de que em Cape Town, simplesmente o portuguesíssimo Cabo das Tormentas ou Cabo da Boa Esperança, nessa cidade… existe a montanha da mesa ? É o espectáculo mais deslumbrante de África: Todo uma elevada montanha, lisa em cima, que se parece a uma mesa de terra e pedra! Pois faltou ao seu livro esta «montanha da mesa» da Cidade do Cabo dos portugueses, agora dos sulafricanos (também em tormentas). A «montanha da mesa», pela sua grandiosidade e côr negra, entre nevoeiros e brumas, foi tomada…

como um gigante, precisamente o gigante Adamastor, criação de Camões em Os Lusíadas. Foi pena que Ud. não tivesse explorado em seu livro esta dimensão de mesa, mesa geografia, mesa mito, o que tornaria seu livro ainda mais universal e sentido pelos portugueses que desde meninos beberam na escola a «leyenda», uma montanha- mesa tornada gigante amoroso que chora por uma Tétis desdenhosa! Leia o capítulo do Adamastor em Os Lusíadas, um livro que tanto entusiasmou o vosso Lugones e o querido Borges.

Também achei curioso a troca de «masas» por mesas a p. 66, com Ortega y Gasset, à mistura… o Ortega que viveu entre Uds. e escreveu «meditación argentina», todo um hino à vossa singularidade sociológica. Claro que a «criolla» de Ortega era Victoria Ocampo que muito pouco tem de criolla. Nisso se enganou.

Amigo, me despido de Ud. desde esta minha mesa metálica, secretária…

Com um abraço de que tenha êxito junto do Egito,

o s.e.u.